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(todo mundo sabe que só em blogs "os últimos serão os primeiros")

Trazendo o barco para Miami

 

Comprei o Bedouin em Green Cove Springs, uma cidade pequena na margem do rio St John, perto de Jacksonville (que é a capital da Florida). Durante o processo da compra, Richard, o antigo proprietário, ofereceu-se para fazer comigo parte do percurso até Miami, me mostrando como funcionava o barco. A oportunidade me pareceu imperdível.

 

O processo todo da compra acabou durando mais que o previsto inicialmente, de forma que, no início de fevereiro, soube que Richard e Jean, sua mulher, só ficariam até o dia 13 em Green Cove Springs. Para não perder a chance de conhecer o barco através daquele que tinha sido seu dono por quatorze anos, comprei uma passagem para dois dias depois, dei uma desculpa no trabalho e embarquei para Jacksonville.

 

Desembarquei perto da meia-noite, depois de uma conexão cansativa de Miami a Jacksonville, peguei um táxi até Green Cove Springs, apaguei num hotel na beira da estrada e estava na marina na manhã do dia seguinte. Jean estava lá com Richard, para se despedir e nos desejar boa viagem. Carey, o corretor que tinha me mostrado o barco e ajudado na compra, também foi se despedir.

 

Saímos da marina pelo meio da manhã.  Eu, no leme, e Richard sentado no cockpit. Esta mesma cena repetiu-se muitas horas nos três dias seguintes. Depois do rio St John, que banha Jacksonville, entramos na Intercoastal, com seus rios e canais bem sinalizados, abrindo e fechando pontes levadiças no caminho (até Miami foram 39, se não estou enganado). Richard mostrou-se uma excelente companhia e um grande contador de estórias. Amoçávamos no cockpit, um sanduíche ou salada que ele descia e preparava, mas antes de sair, pela manhã e depois de ancorar, ao anoitecer, fazíamos um "tour" pelos diferentes sistemas do barco (os sistemas elétricos de corrente contínua e de corrente alternada, as tubulações de água doce e salgada, a direção hidráulica) e seus equipamentos (o motor principal, o guincho da âncora, o radar, o rádio, o gps, os painéis solares, o gerador de vento, o gerador à gasolina). Ele me mostrou onde estavam guardadas as velas, ferramentas, e as inúmeras peças sobressalentes.

 

Quando escurecia, preparávamos um jantar . A comida era boa. Para viabilizar esta viagem, marcada em cima da hora, Richard e Jean se ofereceram para comprar tudo o que precisaríamos. Da comida às panelas, toalhas e roupa de cama, tudo foi visivelmente escolhido com cuidado e vontade de agradar. Depois do jantar ele ligava para Jean. Era comovente ver o carinho com que se tratavam (meio como desculpa, ele me contou que, desde que se aposentaram, quatorze anos antes, aquela era a primeira vez que estavam separados). Depois, de barriga cheia, banho tomado e saudades amainadas, íamos dormir, ele na cabine de proa e eu na de popa (que é meu "quarto" até hoje).

 

Richard me acompanhou até Daytona Beach. Dormi lá, pela primeira vez sozinho no barco. Na manhã seguinte chegaram o capitão que eu tinha contratado para me ajudar a levar o barco para Miami e um amigo que ele convidou para nos acompanhar. Foram mais três dias, bem mais movimentados (encalhamos em Jupiter - horas esperando a maré subir!) e um cabo da poita enroscou-se em torno do eixo da hélice em Ft Lauderdale. Nenhuma das duas vezes eu estava ao leme (embora eu timoneasse a maior parte do tempo). Melhor, então, dispensar os detalhes dos dois eventos, para poupar a reputação do profissional responsável por eles.

 

O fato é que cheguei a Crandon Park Marina, em Key Biscayne, uma semana depois de ter deixado Green Cove Springs, mas com o barco inteiro.

Richard

 

Richard é um homem forte e saudável aos 68 anos. Filho adotivo de um grego, tem um origem que mistura etnias e nacionalidades, como, de resto, a maioria da população das Américas. Nasceu em Nova Iorque, mas foi criado em Connecticut, para onde a família se mudou quando ele ainda era uma criancinha.

Concluíu o ensino fundamental e entrou numa Trade School, uma espécie de escola técnica, matriculado no curso de desenho. Aprendeu desenho arquitetônico, de tubulações, elétrico, mecânico. Teve alguns estágios e empregos, antes do serviço militar.


Alistou-se na Marinha. Passou um sufoco na crise dos mísseis, em 1962, em prontidão no seu navio, pronto para invadir Cuba, se a guerra com a União Soviética fosse inevitável. Nada disso aconteceu. Deu baixa em 66, enquanto a presença militar no Vietnam escalava, escapando, desta vez sim, de uma guerra de verdade.


Casou-se com Jean, sua namorada desde que tinha 17 e ela 15. Criaram os dois filhos, um menino e uma menina, numa fazenda sem fins comerciais em Connecticut. Enquanto os meninos montavam cavalos e cresciam felizes, Richard dirigia ônibus escolar, trabalhava como carpinteiro, como técnico do time da escola ou chefe escoteiro. Estes pequenos empregos o permitiram ficar perto dos filhos enquanto estes eram pequenos.


Quando os meninos cresceram, Richard percebeu que não escaparia da vida corporativa. Começou a trabalhar numa empresa de componentes eletrônicos. Entrou na faculdade, à noite, no curso de Administração. Por seis anos, o trabalho e os estudos tomaram parte do tempo que antes era dedicado à família. Formou-se com especialização em Sistemas de Informação.


A partir daí, teve uma vida de razoável sucesso em empresas que forneciam serviços de telemetria para a NASA, balanças eletrônicas para os Correios, e automação e controle industrial para empresas, em geral. Tornou-se mais e mais importante, nas empresas em que trabalhou, e teve seu desempenho sempre reconhecido.


Enquanto isso, Jean bancou a dona de casa por uns poucos anos, enquanto os filhos ainda eram pequenos. Junto com Richard, começou a frequentar a faculdade, à noite. Formou-se em quatro anos. Trabalhou como analista de sistemas e contadora, em empresas grandes como a Fujitsu, onde descobriu que a cultura japonesa encarava o trabalho de uma mulher de um modo muito diferente ao que estava acostumada.


Como muitos trabalhadores americanos, Richard um dia notou que seu empregador trabalhava para torná-lo dispensável. Uma moça que reportava-se a ele foi promovida e, numa reorganização do trabalho, assumiu muitas de suas antigas responsabilidades. Richard entendeu o movimento e reagiu de modo muito emocional. Sofreu enormemente.


O litígio com a empresa teve dois efeitos: deixou clara sua posição na relação empregador-empregado (o que o levaria a reinventar-se e tornar-se imprescindível na certificação ISO 9000, que a empresa perseguia) e mostrou que, quanto mais rápido ele pudesse ser ver livre da vida corporativa, melhor. A experiência fez Richard começar a planejar uma aposentadoria precoce.


Aos 55 anos, Richard anunciou sua aposentadoria. As reações variaram da surpresa ao choque. Eles tinham, porém, antecipado as resistências. Já tinham o barco e a vontade de sair em cruzeiro.


De Connecticut, desceram até Chesapeake Bay, que exploraram alguns anos, vivendo no barco. Chesapeake Bay é uma baía imensa, que se estende por seis estados, e é a meca da vela do nordeste dos Estados Unidos. Um dia, resolveram conhecer o sul, e começaram a descer a Intercoastar Waterway, um conjunto de canais construídos pelo homem que ligam rios e lagos, tornando possível navegar do nordeste ao sudeste dos Estados Unidos dentro da costa. Desceram até a Flórida, onde mantiveram o barco por anos, visitando Connecticut e a família no inverno. Exploraram as costas leste e oeste, e as Keys da Flórida - o conjunto de ilhas que se estende do sul de Miami até quase Cuba. Um dia cruzaram a Corrente do Golfo e passaram um ano conhecendo as Bahamas.


Aos 68, quando Jean, 66, sofria mais intensamente de asma e morria de medo de ser surpreendida por uma crise longe de atendimento médico, Richard resolveu trocar a vida de cruzeirista pela de campista. Comprou um motorhome, um ônibus/casa, que tem todo o necessário para a vida, e começou uma vida não muito diferente da anterior, e que já o levou tão longe quanto a costa oeste do Canadá e o Alaska.



As pontes levadiças

 

Como eu já disse antes, são quase quarenta pontes levadiças entre Green Cove Springs e Key Biscayne.

 

A maioria delas abre "on request", ou seja, sempre que um barco solicita. A medida que nos aproximamos de Miami e o fluxo de automóveis aumenta, tornam-se mais frequentes as pontes que abrem apenas em horários fixos (e só se houver barcos esperando para passar) e esses horários de abertura tornam-se mais espaçados. Mas, no pior dos casos, abrem de hora em hora no horário de maior movimento e sob solicitação, tarde da noite e madrugada.

 

Todas as pontes levadiças tem operadores que trabalham numa pequena torre, de onde podem observar o rio/canal e o movimento sobre a própria ponte. Eles monitoram o canal 9 do rádio VHF. Então, quando estávamos chegando perto da ponte (o suficiente para sermos vistos pelo operador, mas não tão perto que fôssemos obrigados a esperar muito pela abertura), estabelecia-se um diálogo mais ou menos assim:

 

"Colonial Bridge. Colonial Bridge. Aqui é o veleiro Bedouin, aproximando-se da ponte pelo lado norte. Câmbio".

 

"Prossiga, Bedouin".

 

"Solicito a abertura da ponte, quando for conveniente".

 

"Aproxime-se que vou abrir a ponte de modo a não fazer você esperar". Ou: "Reduza a velocidade. Há uma ambulância se aproximando e só posso levantar a ponte após a passagem dela".

 

Ao cruzar a ponte levantada, assim que o mastro passava da linha de descida da ponte, eu pegava o rádio de novo e dizia: "Colonial Bridge. Colonial Bridge. Aqui é Bedouin. Estou liberado. Obrigado por abrir a ponte". E o operador respondia: "De nada. Tenha um bom dia, capitão". Nunca fui chamado tantas vezes de capitão quanto nestes sete dias. Talvez venha a me tornar comum...